É possível recorrer à Literatura para ensinar Direito? A resposta é sim, o exemplo está
aqui. Leiam e descubram como Iago, o temível intriguista da peça «Othello», de Shakespeare, cometeu o crime perfeito. Mas será que os estudantes de Direito portugueses ainda sabem quem é Iago, Othello, Shakespeare? Será que tem razão quem defende que está na «
altura de invertermos a pirâmide do nosso sistema educativo remetendo muitos dos nossos licenciados para os saberes da antiga 4.º classe» [expressão que retirei de um comentário ao post
Bolonha, o paradigma perdido, de Rui Baptista, que encontrei no
De Rerum Natura]? E se a resposta for sim, no que aos Advogados concerne, será que
esta é a melhor solução?
I wonder...
Avelino de Jesus, Director do ISG - Instituto Superior de Gestão, faz, no Jornal de Negócios,
«Um balanço realista do Processo de Bolonha». Li-o e constatei que também ele acha que
as partes boas da reforma não são originais e as que são originais não são boas. Neste balanço ficam, ainda, por explicar as razões da passividade das universidades portuguesas perante as imposições de Bruxelas e do Governo, quando este até seria um daqueles casos em que ser «mau aluno» teria compensado. Talvez um dia...
Na passada terça feira voltei à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, a convite do Núcleo de Estudantes de Direito da respectiva Associação, para «conduzir» alguns alunos numa breve «visita guiada» aos terrenos da Retórica, essa arte antiga hoje em vias de extinção. Escrevo
voltei porque, de certa forma, sinto-me ex-aluna, por ter frequentado, no início dos anos oitenta, o Curso de Estudos Europeus dessa mesma Faculdade. Depois, devo grande parte da minha formação civilista, na Faculdade de Direito de Lisboa da Universidade Católica do final dos anos setenta, aos grandes professores da Universidade de Coimbra, dos quais recordo em particular Antunes Varela, Ferrer Correia e Mota Pinto. Deles guardo a memória do que é o «saber total», um saber reflectido, organizado, um verdadeiro conhecimento, e não apenas um mero somatório de informação, desprovido de um sentido, indiferente a uma lógica interna. Vem isto a propósito das ideias que retive das minhas conversas com os estudantes de Coimbra durante a minha visita, na passada terça feira, e também do artigo que hoje encontrei no DN sobre a alegada dificuldade de adaptação das universidades portuguesas ao
processo de Bolonha que, aliás, tem vindo a ser alvo de violenta contestação um pouco por toda a Europa, e ainda este mês, na vizinha
Espanha. Perguntaram-me os estudantes o que penso sobre a actual duração dos cursos - se é ou não conveniente fazer o mestrado - e se o novo modelo de ensino terá ou não vantagens. A verdade é que não conheço o novo modelo. O mais que consegui fazer foi transmitir-lhes, à distância de vinte e cinco anos, a avaliação que faço da minha própria formação universitária. Sobre a fundamental questão do método de aprendizagem, de que em particular os estudantes me falaram, revelando pouco entusiasmo pelas novidades introduzidas por Bolonha, li
aqui que «
nos termos de Bolonha, o método de ensino deve ser menos centrado na transmissão dos conhecimentos do professor para os alunos, e mais para a orientação dos alunos a buscar informação e reflectir sobre ela.» O problema é saber que informação o aluno deve ser orientado a procurar e, sobretudo, para quê. Ora, a resposta a esta questão torna-se bem mais evidente quando, pesquisando a informação disponível, fui parar
aqui:
«Tout ce que vous avez toujours voulu savoir sur les relations entre l’Europe, l’ERT, l’OCDE, l’OMC, le processus de Bologne, la stratégie de Lisbonne et la marchandisation de la connaissance à l’échelle européenne et mondiale...» e é mesmo assim. Se tem dúvidas, veja o vídeo.
Esta chamada de atenção para a questão subjacente à defesa da limitação da capacidade para advogar nos tribunais superiores - que, aliás, já tinha sido abordada
aqui, e em todas as suas vertentes - fez-me recordar uma outra questão, com ela relacionada: aos candidatos ao CEJ pela “via da habilitação académica”
já se exige o grau de mestre ou de doutor, ou o respectivo equivalente legal; aos candidatos ao estágio de advocacia continua a exigir-se apenas a licenciatura. Será esquecimento ou a intenção é mesmo deixar assim? Ainda a propósito de formação, uma outra nota
, suscitada pela notícia que encontrei
aqui: julgo não me enganar quando afirmo que os advogados e os solicitadores são das poucas, senão mesmo as únicas profissões em Portugal cujos «actos próprios» estão definidos e regulados por lei especial. Neste contexto, fará sentido a associação pública que representa os advogados «promover» formação em áreas de actividade não incluídas nos actos próprios?
"Bolonha exige uma mudança de paradigma na forma de ensinar e aprender com o objectivo de tornar os alunos independentes e autónomos. Só que os estudantes chegam ao ensino superior a reproduzir os manuais, observa Maria de Lurdes Correia Fernandes, vice-reitora da Universidade do Porto. 'Eles não estão habituados', queixa-se". (in
Público)
Os alunos não estão habituados, os docentes menos, e os de Direito menos ainda...
Por isso temo que, no que respeita ao Direito, esta mudança de paradigma não vá além dos
patéticos títulos e não passe de uma forma hábil de resolver o problema de financiamento das universidades, numa área em que a oferta de licenciados há muito excedeu a procura e, não obstante, as universidades são mais que muitas.
Confesso que já estou muito cansada
deste tipo de discurso. Acho que é tempo de mudar o rumo.
Há uns dias foi notícia a existência de 66 vagas por preencher na Faculdade de Direito de Lisboa, após a 1.ª fase do Concurso Nacional de Acesso ao Ensino Superior, sendo que a média do último colocado foi de 11,3 valores (cfr.
aqui ). Seria interessante saber, também, quantas vagas ficarão por preencher nas Faculdades de Direito de Lisboa das Universidades privadas.
Uns dias depois, na Faculdade de Direito de Lisboa da Universidade Católica, realizou-se uma conferência sobre "o perfil do licenciado em Direito no futuro", na qual intervieram o actual Bastonário da OA e a Directora do Centro de Estudos Judiciários (cfr.
aqui) .
O Bastonário disse
concordar com a aplicação do Processo de Bolonha, porque este irá fornecer aos estudantes as "orientações essenciais" para que desenvolvam formação ao longo da vida, mas pretende que o governo clarifique qual o sistema de ciclos de estudo necessários para o acesso à profissão.
A Ordem (isto é, o Conselho Geral, a quem compete esta decisão) terá proposto ao Governo que passe a ser exigível o grau de mestre, ou seja, três anos de licenciatura e dois de mestrado.
As declarações do Bastonário indiciam, no entanto, que a ele não repugnará o modelo que, até agora, apenas a Católica adoptou, e que permitiria
a entrada na profissão com uma licenciatura de quatro anos,(...) complementada com mais um ano de formação direccionada.
Fica por esclarecer a quem competiria tal formação e como é que a mesma seria articulada com os dois anos de estágio profissional previstos no EOA.
A esta luz, a afirmação da Directora do Centro de Estudos Judiciários, de que
"a universidade tradicional está condenada. Acabou! Hoje pede-se que formem alunos com competências para um mercado de trabalho volátil, onde existem cada vez menos profissões e cada vez mais 'jobs'" assume um particular significado :-)